QUARTA-FEIRA, COMO ERA ANTES
de RUY JOBIM NETO
Eu mal pude me esconder debaixo das cobertas. “Medrosa!” – berrou meu irmão, quase me dilacerando o ouvido. “Meninas são medrosas!”. Ele continuava com a ladainha. Chovia lá fora e ventava muito. Mas era quarta-feira, isso ninguém tirava da gente. Os fios de cabelo estavam todos embaraçados, eu mal conseguia encontrar meu lacinho. Mamãe mandara a Augusta nos chamar. “Medrosa!” – o chato do João Paulo não parava com aquilo, até dava nervoso. “Medrosa de quê, menino?” – perguntei mesmo! Meninos não têm problema com vestidinhos, com sapatinhos, lacinhos, mas em compensação são chatos até não agüentar mais!
Augusta aparecia na porta. “Estou de férias, Augusta!”, resmunguei com cara de sono. Mas o café da manhã era religioso, naqueles tempos. “Sabe que dia é hoje?” – pergunta a governanta. Claro que eu sabia. E mal via a hora de sair à varanda só para esperar o rapazinho da entrega chegar. Ah! Eu ficava toda nervosa, não parava quieta. “Eduarda mandou foto! Eduarda mandou foto!” Sim, e daí, menino chato? Mandei foto, sim, e escrevi uma cartinha! Já pensou se eles publicam? Papai teve que pedir que viessem dois exemplares. Um “Tico-Tico” só pra mim, um “Tico-Tico” só pro meu irmãozinho, esse chato, exatamente porque uma vez chorei dois dias inteiros. Ele rasgou toda uma edição, eu não me conformei com aquilo. E ele ria feito um diabrete!
A revista demorava. Ah, como demorava. E eu comia biscoitinhos com Reco-Reco e Bolão, limpava os lábios com a Faustina, eu tomava chá com Chiquinho e Jagunço. E com o moleque Benjamin, também. Nós tivemos por aqui o Nestor, que morou muito tempo em nossa casa, e era nosso moleque de recados, a mãe dele era escrava. Enfim, eram férias, e toda quarta-feira sem falta, aquela turminha toda aparecia pra gente brincar. João Paulo fazia das suas, levava sempre uma sova. Não parava quieto, eu achava até que ele era o próprio Chiquinho encarnado. Como era bom estar de férias, nem ao menos a aula de piano era tão cedo assim. E nas quartas-feiras, eu não gostava mesmo de me sentar ao piano e tocar Chopin ou Liszt. Eu ficava doidinha esperando a revista. Ainda mais aquela. Nem os pensamentos ficavam quietos, era tudo conturbado!
Meu pai já havia saído para o trabalho, todo sisudo, todo sério, atrás daquele bigode imenso. O motorista dele era sempre muito gentil e ouvia todas as lamúrias do meu pai, aquelas coisas dos negócios dele, de café e do porto. Eu não entendia nada, só queria saber da minha revista. “Vê se come direito, menina! Eduarda, é melhor mastigar seu pão com geléia com calma, senão você se engasga!” – e em meus pensamentos eu fazia um “tsc,tsc” para as preocupações da Augusta. Governanta é sempre governanta, parece que nunca dorme. “Que música você mais gosta, nesta vida?” – perguntei pra ela. Ela não sabia responder. Você não canta, Augusta? Uma governanta é proibida de cantar? Nem nos seus sonhos? Eu acho que uma vez a vi cantarolar “Carneirinho, carneirão”, ou algo parecido. Acho que era isso. Vai ver que ela cantarolava quando fazia aqueles bolinhos deliciosos dela.
Perto do fim de tarde, todo dia, o rádio tinha um programa de que o João Paulo gostava muito, o “Quarto da Criança”, eram quinze minutos de historinhas infantis. Cada uma mais linda que a outra! A gente dormia cedo, naqueles tempos, mas às terças-feiras era delicioso dormir cedo! Só porque no outro dia vinha “O Tico-Tico” pra gente! E eu imaginando como ficaria minha fotinho na revista. Viria ao lado de que personagem? Eu adorava o ratinho curioso, era tão singelo e ao mesmo tempo tão esperto! Os contos, as páginas pra gente armar, as notícias de ginásios esportivos, eu gostava de tudo! E as canções, então! Eu adorava levar pro piano aquelas partiturinhas que eles publicavam! Minha mãe ficava louca, dizia que eu não queria mais ela. Que isso...Eu tocava era para ela mesma... “O Cravo brigou com a Rosa...”, essa eu amava tocar e tocar e tocar...Até o João Paulo vir de novo e me berrar algo no ouvido, e eu sair correndo atrás dele, como sempre fazia. Eram mesmo muito bons aqueles dias.
Do alto dos meus dez anos, eu sabia muito bem o que queria. Eram duas coisas: ser professorinha e a minha revista! As meninas comentavam no intervalo do grupo escolar sobre o que elas liam n’O Tico-Tico. E elas mandavam desenhos e poemetos. Eu era mais a música, mesmo. Nas aulas, tínhamos Latim e Francês, oui, eu falava, lia e escrevia com fluência incrível, era o xodó das professoras. Mas a revista vinha em Língua Portuguesa, mesmo, eu gostava mais ainda. Não precisava inventar nada, era do jeito que a gente falava, bem do nosso jeito.
Fiquei muito triste quando o Sr. Agostini morreu. Ele desenhou muita coisa na revista, até o nome dela foi ele o primeiro que fez. E eu bem que pedi uma vez ao meu pai “Papai, um dia o senhor me leva lá onde eles fazem a revista?”, e ele se ria todo, atrás daquele bigode imenso e sisudo dele, achava tudo aquilo uma fantasia infantil minha. Mas não era não. Eu precisava me certificar de que havia gente de verdade fazendo aquela publicação que eu tanto amava.
O entregador não vinha. Lá fora chovia muito e continuava ventando. Ah, quase que eu ponho minhas galochas só para sair à rua atrás de alguém que me vendesse um exemplar! Nunca uma espera me deixou tão nervosa! “Mas é assim mesmo, Eduarda, ou você não conhece o clima daqui?” Augusta tinha toda a razão. Era névoa, depois chovia, parava um pouco, e quando vinha o sol, que saísse debaixo, e eu com toda essa roupa! Era muito tecido para qualquer criança, era desconjuntado, mal dava pra brincar e correr, a roupa quase me petrificava. Meu irmão ficava olhando pela janela, pertinho das cortinas e do vestíbulo. Eu me juntava a ele, começava a olhar a rua, e só via os pingos na vidraça.
Então pensei – o sono me domina. É quarta-feira, eu sei, mas de que adianta eu ficar aqui, olhando pela janela, e vendo os vendedores de pão descendo e subindo as ruas, e todas aquelas pessoas tentando escapar do chuvisco e da ventania? “Por que você não dorme, Eduarda, e quando menos esperar, terá uma revista bem do seu ladinho, assim, pra você ler, recortar e cantar as musiquinhas?” A idéia da Augusta fazia sentido, mas era a minha foto que eu esperava, embora o sono viesse com um jeito assim que nem te conto. “Dorme um pouquinho!”. E eu bocejava com boca bem aberta, e o meu irmãozinho ali ao lado, no parapeito da janela, só de me olhar já bocejava junto. Ótimo, assim ele parava um pouquinho de me azucrinar, de me chamar de medrosa e de berrar no meu ouvido e fugir depois.
“Eduarda!” – a voz veio da porta principal. Era o papai que chegava e trazia exatamente nossas revistas, a minha revista! “O Tico-Tico!!!!”, berrou o meu Chiquinho de plantão. Eu e João Paulo corremos até o papai, ele nos abraçou, e meus olhinhos nem piscavam mais, estavam completamente acesos. Naquela manhã interminável de quarta-feira, o sono já tinha sido dispensado, eu não queria mais saber dele. Era só para a revista que eu tinha olhos! E folheamos tudo de ponta a ponta! Eu sempre lia algumas coisas para o João Paulo, até que ele aprendesse os seus primeiros latins, mas aquele dia era muito especial. “Cadê a sua foto, Eduarda?”. Eu procurei, nós procuramos, todos nós procuramos, e vasculhamos, e reviramos a revista inteira. Ué, não saiu? Eu fiquei arrasada. Até o chato do meu irmãozinho percebeu que eu não estava para conversa, nem tentou me animar. Dormi, ao menos até à aula de piano. Liszt e Chopin em vez de minha foto ou minha carta. Acho que nunca saiu a minha foto. Ou minha paciência se fora à medida que eu crescia. Medrosa de quê, menino? Só se for medrosa do relógio, do tempo, de pensar que não seria mais criança para sempre. Mas como era bom!
FIM
Eu mal pude me esconder debaixo das cobertas. “Medrosa!” – berrou meu irmão, quase me dilacerando o ouvido. “Meninas são medrosas!”. Ele continuava com a ladainha. Chovia lá fora e ventava muito. Mas era quarta-feira, isso ninguém tirava da gente. Os fios de cabelo estavam todos embaraçados, eu mal conseguia encontrar meu lacinho. Mamãe mandara a Augusta nos chamar. “Medrosa!” – o chato do João Paulo não parava com aquilo, até dava nervoso. “Medrosa de quê, menino?” – perguntei mesmo! Meninos não têm problema com vestidinhos, com sapatinhos, lacinhos, mas em compensação são chatos até não agüentar mais!
Augusta aparecia na porta. “Estou de férias, Augusta!”, resmunguei com cara de sono. Mas o café da manhã era religioso, naqueles tempos. “Sabe que dia é hoje?” – pergunta a governanta. Claro que eu sabia. E mal via a hora de sair à varanda só para esperar o rapazinho da entrega chegar. Ah! Eu ficava toda nervosa, não parava quieta. “Eduarda mandou foto! Eduarda mandou foto!” Sim, e daí, menino chato? Mandei foto, sim, e escrevi uma cartinha! Já pensou se eles publicam? Papai teve que pedir que viessem dois exemplares. Um “Tico-Tico” só pra mim, um “Tico-Tico” só pro meu irmãozinho, esse chato, exatamente porque uma vez chorei dois dias inteiros. Ele rasgou toda uma edição, eu não me conformei com aquilo. E ele ria feito um diabrete!
A revista demorava. Ah, como demorava. E eu comia biscoitinhos com Reco-Reco e Bolão, limpava os lábios com a Faustina, eu tomava chá com Chiquinho e Jagunço. E com o moleque Benjamin, também. Nós tivemos por aqui o Nestor, que morou muito tempo em nossa casa, e era nosso moleque de recados, a mãe dele era escrava. Enfim, eram férias, e toda quarta-feira sem falta, aquela turminha toda aparecia pra gente brincar. João Paulo fazia das suas, levava sempre uma sova. Não parava quieto, eu achava até que ele era o próprio Chiquinho encarnado. Como era bom estar de férias, nem ao menos a aula de piano era tão cedo assim. E nas quartas-feiras, eu não gostava mesmo de me sentar ao piano e tocar Chopin ou Liszt. Eu ficava doidinha esperando a revista. Ainda mais aquela. Nem os pensamentos ficavam quietos, era tudo conturbado!
Meu pai já havia saído para o trabalho, todo sisudo, todo sério, atrás daquele bigode imenso. O motorista dele era sempre muito gentil e ouvia todas as lamúrias do meu pai, aquelas coisas dos negócios dele, de café e do porto. Eu não entendia nada, só queria saber da minha revista. “Vê se come direito, menina! Eduarda, é melhor mastigar seu pão com geléia com calma, senão você se engasga!” – e em meus pensamentos eu fazia um “tsc,tsc” para as preocupações da Augusta. Governanta é sempre governanta, parece que nunca dorme. “Que música você mais gosta, nesta vida?” – perguntei pra ela. Ela não sabia responder. Você não canta, Augusta? Uma governanta é proibida de cantar? Nem nos seus sonhos? Eu acho que uma vez a vi cantarolar “Carneirinho, carneirão”, ou algo parecido. Acho que era isso. Vai ver que ela cantarolava quando fazia aqueles bolinhos deliciosos dela.
Perto do fim de tarde, todo dia, o rádio tinha um programa de que o João Paulo gostava muito, o “Quarto da Criança”, eram quinze minutos de historinhas infantis. Cada uma mais linda que a outra! A gente dormia cedo, naqueles tempos, mas às terças-feiras era delicioso dormir cedo! Só porque no outro dia vinha “O Tico-Tico” pra gente! E eu imaginando como ficaria minha fotinho na revista. Viria ao lado de que personagem? Eu adorava o ratinho curioso, era tão singelo e ao mesmo tempo tão esperto! Os contos, as páginas pra gente armar, as notícias de ginásios esportivos, eu gostava de tudo! E as canções, então! Eu adorava levar pro piano aquelas partiturinhas que eles publicavam! Minha mãe ficava louca, dizia que eu não queria mais ela. Que isso...Eu tocava era para ela mesma... “O Cravo brigou com a Rosa...”, essa eu amava tocar e tocar e tocar...Até o João Paulo vir de novo e me berrar algo no ouvido, e eu sair correndo atrás dele, como sempre fazia. Eram mesmo muito bons aqueles dias.
Do alto dos meus dez anos, eu sabia muito bem o que queria. Eram duas coisas: ser professorinha e a minha revista! As meninas comentavam no intervalo do grupo escolar sobre o que elas liam n’O Tico-Tico. E elas mandavam desenhos e poemetos. Eu era mais a música, mesmo. Nas aulas, tínhamos Latim e Francês, oui, eu falava, lia e escrevia com fluência incrível, era o xodó das professoras. Mas a revista vinha em Língua Portuguesa, mesmo, eu gostava mais ainda. Não precisava inventar nada, era do jeito que a gente falava, bem do nosso jeito.
Fiquei muito triste quando o Sr. Agostini morreu. Ele desenhou muita coisa na revista, até o nome dela foi ele o primeiro que fez. E eu bem que pedi uma vez ao meu pai “Papai, um dia o senhor me leva lá onde eles fazem a revista?”, e ele se ria todo, atrás daquele bigode imenso e sisudo dele, achava tudo aquilo uma fantasia infantil minha. Mas não era não. Eu precisava me certificar de que havia gente de verdade fazendo aquela publicação que eu tanto amava.
O entregador não vinha. Lá fora chovia muito e continuava ventando. Ah, quase que eu ponho minhas galochas só para sair à rua atrás de alguém que me vendesse um exemplar! Nunca uma espera me deixou tão nervosa! “Mas é assim mesmo, Eduarda, ou você não conhece o clima daqui?” Augusta tinha toda a razão. Era névoa, depois chovia, parava um pouco, e quando vinha o sol, que saísse debaixo, e eu com toda essa roupa! Era muito tecido para qualquer criança, era desconjuntado, mal dava pra brincar e correr, a roupa quase me petrificava. Meu irmão ficava olhando pela janela, pertinho das cortinas e do vestíbulo. Eu me juntava a ele, começava a olhar a rua, e só via os pingos na vidraça.
Então pensei – o sono me domina. É quarta-feira, eu sei, mas de que adianta eu ficar aqui, olhando pela janela, e vendo os vendedores de pão descendo e subindo as ruas, e todas aquelas pessoas tentando escapar do chuvisco e da ventania? “Por que você não dorme, Eduarda, e quando menos esperar, terá uma revista bem do seu ladinho, assim, pra você ler, recortar e cantar as musiquinhas?” A idéia da Augusta fazia sentido, mas era a minha foto que eu esperava, embora o sono viesse com um jeito assim que nem te conto. “Dorme um pouquinho!”. E eu bocejava com boca bem aberta, e o meu irmãozinho ali ao lado, no parapeito da janela, só de me olhar já bocejava junto. Ótimo, assim ele parava um pouquinho de me azucrinar, de me chamar de medrosa e de berrar no meu ouvido e fugir depois.
“Eduarda!” – a voz veio da porta principal. Era o papai que chegava e trazia exatamente nossas revistas, a minha revista! “O Tico-Tico!!!!”, berrou o meu Chiquinho de plantão. Eu e João Paulo corremos até o papai, ele nos abraçou, e meus olhinhos nem piscavam mais, estavam completamente acesos. Naquela manhã interminável de quarta-feira, o sono já tinha sido dispensado, eu não queria mais saber dele. Era só para a revista que eu tinha olhos! E folheamos tudo de ponta a ponta! Eu sempre lia algumas coisas para o João Paulo, até que ele aprendesse os seus primeiros latins, mas aquele dia era muito especial. “Cadê a sua foto, Eduarda?”. Eu procurei, nós procuramos, todos nós procuramos, e vasculhamos, e reviramos a revista inteira. Ué, não saiu? Eu fiquei arrasada. Até o chato do meu irmãozinho percebeu que eu não estava para conversa, nem tentou me animar. Dormi, ao menos até à aula de piano. Liszt e Chopin em vez de minha foto ou minha carta. Acho que nunca saiu a minha foto. Ou minha paciência se fora à medida que eu crescia. Medrosa de quê, menino? Só se for medrosa do relógio, do tempo, de pensar que não seria mais criança para sempre. Mas como era bom!
FIM