quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Conto quarto:

QUARTA-FEIRA, COMO ERA ANTES

de RUY JOBIM NETO



Eu mal pude me esconder debaixo das cobertas. “Medrosa!” – berrou meu irmão, quase me dilacerando o ouvido. “Meninas são medrosas!”. Ele continuava com a ladainha. Chovia lá fora e ventava muito. Mas era quarta-feira, isso ninguém tirava da gente. Os fios de cabelo estavam todos embaraçados, eu mal conseguia encontrar meu lacinho. Mamãe mandara a Augusta nos chamar. “Medrosa!” – o chato do João Paulo não parava com aquilo, até dava nervoso. “Medrosa de quê, menino?” – perguntei mesmo! Meninos não têm problema com vestidinhos, com sapatinhos, lacinhos, mas em compensação são chatos até não agüentar mais!

Augusta aparecia na porta. “Estou de férias, Augusta!”, resmunguei com cara de sono. Mas o café da manhã era religioso, naqueles tempos. “Sabe que dia é hoje?” – pergunta a governanta. Claro que eu sabia. E mal via a hora de sair à varanda só para esperar o rapazinho da entrega chegar. Ah! Eu ficava toda nervosa, não parava quieta. “Eduarda mandou foto! Eduarda mandou foto!” Sim, e daí, menino chato? Mandei foto, sim, e escrevi uma cartinha! Já pensou se eles publicam? Papai teve que pedir que viessem dois exemplares. Um “Tico-Tico” só pra mim, um “Tico-Tico” só pro meu irmãozinho, esse chato, exatamente porque uma vez chorei dois dias inteiros. Ele rasgou toda uma edição, eu não me conformei com aquilo. E ele ria feito um diabrete!

A revista demorava. Ah, como demorava. E eu comia biscoitinhos com Reco-Reco e Bolão, limpava os lábios com a Faustina, eu tomava chá com Chiquinho e Jagunço. E com o moleque Benjamin, também. Nós tivemos por aqui o Nestor, que morou muito tempo em nossa casa, e era nosso moleque de recados, a mãe dele era escrava. Enfim, eram férias, e toda quarta-feira sem falta, aquela turminha toda aparecia pra gente brincar. João Paulo fazia das suas, levava sempre uma sova. Não parava quieto, eu achava até que ele era o próprio Chiquinho encarnado. Como era bom estar de férias, nem ao menos a aula de piano era tão cedo assim. E nas quartas-feiras, eu não gostava mesmo de me sentar ao piano e tocar Chopin ou Liszt. Eu ficava doidinha esperando a revista. Ainda mais aquela. Nem os pensamentos ficavam quietos, era tudo conturbado!

Meu pai já havia saído para o trabalho, todo sisudo, todo sério, atrás daquele bigode imenso. O motorista dele era sempre muito gentil e ouvia todas as lamúrias do meu pai, aquelas coisas dos negócios dele, de café e do porto. Eu não entendia nada, só queria saber da minha revista. “Vê se come direito, menina! Eduarda, é melhor mastigar seu pão com geléia com calma, senão você se engasga!” – e em meus pensamentos eu fazia um “tsc,tsc” para as preocupações da Augusta. Governanta é sempre governanta, parece que nunca dorme. “Que música você mais gosta, nesta vida?” – perguntei pra ela. Ela não sabia responder. Você não canta, Augusta? Uma governanta é proibida de cantar? Nem nos seus sonhos? Eu acho que uma vez a vi cantarolar “Carneirinho, carneirão”, ou algo parecido. Acho que era isso. Vai ver que ela cantarolava quando fazia aqueles bolinhos deliciosos dela.

Perto do fim de tarde, todo dia, o rádio tinha um programa de que o João Paulo gostava muito, o “Quarto da Criança”, eram quinze minutos de historinhas infantis. Cada uma mais linda que a outra! A gente dormia cedo, naqueles tempos, mas às terças-feiras era delicioso dormir cedo! Só porque no outro dia vinha “O Tico-Tico” pra gente! E eu imaginando como ficaria minha fotinho na revista. Viria ao lado de que personagem? Eu adorava o ratinho curioso, era tão singelo e ao mesmo tempo tão esperto! Os contos, as páginas pra gente armar, as notícias de ginásios esportivos, eu gostava de tudo! E as canções, então! Eu adorava levar pro piano aquelas partiturinhas que eles publicavam! Minha mãe ficava louca, dizia que eu não queria mais ela. Que isso...Eu tocava era para ela mesma... “O Cravo brigou com a Rosa...”, essa eu amava tocar e tocar e tocar...Até o João Paulo vir de novo e me berrar algo no ouvido, e eu sair correndo atrás dele, como sempre fazia. Eram mesmo muito bons aqueles dias.

Do alto dos meus dez anos, eu sabia muito bem o que queria. Eram duas coisas: ser professorinha e a minha revista! As meninas comentavam no intervalo do grupo escolar sobre o que elas liam n’O Tico-Tico. E elas mandavam desenhos e poemetos. Eu era mais a música, mesmo. Nas aulas, tínhamos Latim e Francês, oui, eu falava, lia e escrevia com fluência incrível, era o xodó das professoras. Mas a revista vinha em Língua Portuguesa, mesmo, eu gostava mais ainda. Não precisava inventar nada, era do jeito que a gente falava, bem do nosso jeito.

Fiquei muito triste quando o Sr. Agostini morreu. Ele desenhou muita coisa na revista, até o nome dela foi ele o primeiro que fez. E eu bem que pedi uma vez ao meu pai “Papai, um dia o senhor me leva lá onde eles fazem a revista?”, e ele se ria todo, atrás daquele bigode imenso e sisudo dele, achava tudo aquilo uma fantasia infantil minha. Mas não era não. Eu precisava me certificar de que havia gente de verdade fazendo aquela publicação que eu tanto amava.

O entregador não vinha. Lá fora chovia muito e continuava ventando. Ah, quase que eu ponho minhas galochas só para sair à rua atrás de alguém que me vendesse um exemplar! Nunca uma espera me deixou tão nervosa! “Mas é assim mesmo, Eduarda, ou você não conhece o clima daqui?” Augusta tinha toda a razão. Era névoa, depois chovia, parava um pouco, e quando vinha o sol, que saísse debaixo, e eu com toda essa roupa! Era muito tecido para qualquer criança, era desconjuntado, mal dava pra brincar e correr, a roupa quase me petrificava. Meu irmão ficava olhando pela janela, pertinho das cortinas e do vestíbulo. Eu me juntava a ele, começava a olhar a rua, e só via os pingos na vidraça.

Então pensei – o sono me domina. É quarta-feira, eu sei, mas de que adianta eu ficar aqui, olhando pela janela, e vendo os vendedores de pão descendo e subindo as ruas, e todas aquelas pessoas tentando escapar do chuvisco e da ventania? “Por que você não dorme, Eduarda, e quando menos esperar, terá uma revista bem do seu ladinho, assim, pra você ler, recortar e cantar as musiquinhas?” A idéia da Augusta fazia sentido, mas era a minha foto que eu esperava, embora o sono viesse com um jeito assim que nem te conto. “Dorme um pouquinho!”. E eu bocejava com boca bem aberta, e o meu irmãozinho ali ao lado, no parapeito da janela, só de me olhar já bocejava junto. Ótimo, assim ele parava um pouquinho de me azucrinar, de me chamar de medrosa e de berrar no meu ouvido e fugir depois.

“Eduarda!” – a voz veio da porta principal. Era o papai que chegava e trazia exatamente nossas revistas, a minha revista! “O Tico-Tico!!!!”, berrou o meu Chiquinho de plantão. Eu e João Paulo corremos até o papai, ele nos abraçou, e meus olhinhos nem piscavam mais, estavam completamente acesos. Naquela manhã interminável de quarta-feira, o sono já tinha sido dispensado, eu não queria mais saber dele. Era só para a revista que eu tinha olhos! E folheamos tudo de ponta a ponta! Eu sempre lia algumas coisas para o João Paulo, até que ele aprendesse os seus primeiros latins, mas aquele dia era muito especial. “Cadê a sua foto, Eduarda?”. Eu procurei, nós procuramos, todos nós procuramos, e vasculhamos, e reviramos a revista inteira. Ué, não saiu? Eu fiquei arrasada. Até o chato do meu irmãozinho percebeu que eu não estava para conversa, nem tentou me animar. Dormi, ao menos até à aula de piano. Liszt e Chopin em vez de minha foto ou minha carta. Acho que nunca saiu a minha foto. Ou minha paciência se fora à medida que eu crescia. Medrosa de quê, menino? Só se for medrosa do relógio, do tempo, de pensar que não seria mais criança para sempre. Mas como era bom!

FIM

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Conto Terceiro:

LUZ NO LADRILHO
de Ruy Jobim Neto



A porta entreaberta. O menino aguarda, espreita. Ele se percebe numa escuridão apenas cortada por luminescências aqui e ali. Olha. Nem um pio ele solta. Nem a respiração ele pretende que se demonstre, nem uma tosse. Aguarda, sua frio, espera instantes mágicos. O que mais poderia ser diante de seus olhos pueris uma coisa linda? A prima que veio da cidade? Os cabelos lisos e escuros, a pele suave e branquinha, os olhos morenos por trás dos óculos sutis, a boca que dilata palavras ora doces, ora amargas, ora humanas? Marcela? A companhia a cavalo, a faca que espalha manteiga no pão logo cedo de manhã, a canção na varanda? Quanta coisa ao mesmo tempo, tudo lhe vem à cabeça!

Marcela tomava banho de madrugada, ele sabia. E queria ver algo a mais do que o ombro que transparece, o início do colo, o mexer dos braços fininhos, a suavidade dos gestos, todos muito bem medidos. A mulher sabe quando é observada, nisso há um conhecimento ancestral, aprendem com suas gerações para trás. Todas elas. E Marcela não estava de fora desse rol. A juventude que ela exala o transgride, deixa o menino atônito, sem vocábulo. Paixão juvenil? Era a primeira masturbação com motivo real e imediato, descobrindo os pêlos, o membro, o olhar. Porque é através do olhar que a coisa se dá, ele acabará descobrindo. O mesmo olhar de que se nutre Marcela e todas elas, as mulheres.

O banho. O som do chuveiro. Mas antes de tudo, a roupa que se coloca à parte. Ele imagina, o menino ouve, desespera-se, exaspera-se, teme ser visto pela avó, o que diria ela? Que a prima o levaria para outros descaminhos? Todos dormem, ele se certificara, inclusive a avó, principalmente. Roncos são ouvidos. Roncos e o chuveiro. Aquilo era de enlouquecer. O coração pulsa, é evidente. A prima está nua, pensa ele, nua e linda justamente como quando está vestida, só que melhor. Como será? Como será Marcela? Que lindos segredos ela guarda por trás de vestidinhos e camisas tão lânguidas quanto agressivas? As perguntas são infinitas, e todas se fazem presentes, insuportáveis.

A janela por fora da casa seria muito óbvia. O barulho de objetos faria a garota sair de seu banho. Marcela não cantarola agora, como faz de tardinha, na varanda, quando ela entoa umas modinhas da cidade, acompanhadas pela avó. O mistério de uma jovem mulher nada mais é do que o conjunto lindo de sua pele, o menino já esperava há tempos ali, não dormira. Na realidade, ele planejara aquilo, ele medira os passos, as ações, ouvira todas as frases de Marcela: “eu adoro tomar banho de madrugada” ou “ah, se eu pudesse andar nua pela casa, aqui, à noite”, aqueles comentários entre as meninas, entre as irmãs e a prima.

Nada mais comum do que o menino e a prima longínqua, agora completamente desnuda, nada mais excitante. Ela olharia para ele? Ele não teria chance alguma, pensa. E sabe disso, e sabe o quão distante está aquela criatura dele. O que se poderia fazer para ter Marcela em seus braços, enrolar-se infinitamente naquela pele, deitar sobre os cabelos lisos e escuros, deixar-se devorar pelos olhos morenos e cheios de novidades? Um homem, para amar Marcela, precisaria ter coisas, ser coisas, mas não ele, pensava. Não ele, o menino, ali, seminu e masturbante, silencioso na sua curiosidade.

Marcela está à vontade, as jovens sempre estão. Mesmo quando não fazem, seus gestos são redondos, quase lascivos. Mas são de uma precisão que atormenta. De dia, o que quer que façam tem seus objetivos, seus significados. Meninos são tolos o suficiente para não perceberem coisa alguma. E sonham, imaginam qualquer coisa, facilidades, frases sem palavras perfeitas, tudo cai feito um buraco. Há uma distância insolúvel. Meninos exasperam, as jovens se deliciam. A luz no ladrilho diz coisas. A porta indica saída de Marcela, à espreita novamente o menino se coloca. Paralisa-se. O que pode acontecer?

Uma toalha. A roupa ficou sobre algum móvel, um varalzinho, algo assim. Marcela ainda tem a pele úmida, gotas ainda quentes se espalham pelos ombros e descem pelos braços fininhos. Cabelo liso e respingando. Cheiro de prima banhada. Saberá ela da presença dele, ali, à espera de algo que nem ele mesmo sabe o que é? O que ele ouvira de Marcela se concretizaria? Mulheres têm coragem, a mãe dele tem, enfrentou muita coisa, mas a mãe nem passa pela cabeça agora. Marcela. A pele e a toalha. E a sensação de perambular pelos corredores, à noite, roncos adentro, luminescências aqui e ali. A ousadia a olhos vistos.

Os pequenos pés que de dia embalam botinas e sapatinhos nas festas agora estão à mostra, os tornozelos finos, todo o conjunto de que se forma Marcela. Passos de felino, inaudíveis, deliciosos, brincantes. O menino sua gelado, neste momento. Ele a perde de vista, ela faz curvas na escuridão, vai para outras saletas, vasculha corredores, graciosamente ela corta a noite. A escada, a cadeira de balanço, a lareira apagada, uma luz que vem pela fresta da janela da sala. O menino sente seus ossos estalarem, qualquer som é perigoso, Marcela é quem determina.

Sombra e beleza se completam, qualquer fio de luz descobre Marcela, é muito tarde, ou muito cedo, todos dormem apesar disso. Mesmo os gatos sabem quando miar, e não miam quando vêem dois corpos nus após fazerem amor, é algo da sabedoria milenar deles. O que farão diante de uma jovem envolta em toalha, ou de um menino espreitando essa mesma jovem é algo que nem os livros sabem dizer. O menino se deita de bruços no chão. Não vê Marcela, mas vê a toalha. Ele sabe agora, ela se encontra linda. O menino quer muito se aproximar. Quiçá a prima esteja deitada no sofá das festas e das conversas matinais, ou mesmo na cadeira de balanço, dizendo coisinhas desconexas e dignas de ouvir.

O sono é algo que não vem, nem o bocejo, só o coração pulsando feito louco. O corpo inteiro parece uma pilha, uma explosão, um moinho descontrolado. Uma risada baixinha ele ouve. Como quer saber do que se trata! Um alívio, respiração, tessitura de voz, Marcela fazendo e falando suas coisas, só dela. Que vontade de saber, de compartilhar, mas ela é rápida nas palavras como quando enrola suas madeixas com os dedos. Paixão de menino? Os olhos espertos que vêm à mente, o cheiro de prima banhada, os pés de feltro que cruzam a noite na casa, que aventura! O coração pulsa, quase explode, medo completo de ser visto e reconhecido. Marcela agora tem outro gosto, não somente o de passar manteiga pelo pão logo cedo de manhã, nem o das cantigas na varanda. Há sabor. Muito sabor.

Os pés dela se movem, rápidos, lépidos. O menino fica atônito. O corpo nu da prima vem na direção do corredor, vem, ele vem, sem parar. Ele fecha os olhos, é o fim, será descoberto, o pavor completo. Mas por entre os dedos, Marcela se deixa avistar, ela vira para a cozinha, rápida e nua. Sorriso, ele ouve. Gole d’água no meio da madrugada. O menino quase tem uma síncope, o corpo dele praticamente se paralisa. Ela é linda, linda. Não a pode venerar, nem idolatrá-la, quanto menos imaginar coisas, mas ele imagina. Marcela não. Ela é mulher, sente de outras formas a vida, tem mais os pés no chão, aparentemente. A toada que a embala segue noutro curso, é a terra que a move e faz ter a beleza dos pássaros que alçam vôo.

Os segundos são eternos naquele pedaço de noite, naquela luminescência, naquele cricrilar da mata selvagem, na juventude do novo dia. Ele fecha os olhos. Deita o rosto sobre o chão, sorri. Quando abre os olhos, depois de respirar sem poder, vê dois pés de lado para ele, paralelos à cabeça, juntos. Marcela. Olhando para cima, a presença da toalha, ilustre traidora. A prima se agacha, olha bem dentro dos olhos, pupila com pupila, naquele naco de luz que nem se avoluma direito. Um sorriso. Ela toca delicadamente dois dedos nos lábios, beija-os e depois os leva até os lábios do primo, ali, deitado. Ela se levanta tão logo encerre o gesto e volta para o seu quarto. Ele permanece ali, deitado, rosto no chão, o toque dos dedos dela nos lábios, o beijo transmitido, proibido, cantiga na varanda, manteiga no pão, a imagem do corpo nu, os grilos da noite, a pele de prima banhada, a luz no ladrilho. Nem se sabe mais como será amanhã.

FIM

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Conto Segundo:

CONVERSA DE FOYER
de RUY JOBIM NETO


Fui convidado para mais uma pré-estréia. Um filme de amigo meu, curta-metragem, num grande cinema da cidade. Sala cheia, muita gente, muito calor humano, cafezinho e pessoas que se acotovelam. Pessoas que não se conhecem. O máximo. A acompanhante, ao lado, diz que vai ao toilette. Espero, aguardo, atento. As pessoas continuam se acotovelando e exprimindo frases sobre o filme que ainda não viram, outras lêem o prospecto que a garota da produção, lá na porta do foyer, distribuía a todos que entravam. O semblante do diretor, de nome Maurício, demonstrava a satisfação. Ao seu lado, a atriz principal, Diana, que dizem – não só tem cena de nu frontal como também não recebeu cachê pelo trabalho.

A acompanhante consegue entrar no toilette. Eu me dirijo, ou pelo menos tento me dirigir ao diretor, de nome Maurício. Mas ele não me vê, ou faz que não me vê. Tem olhos só para sua atriz. E não há flashes, não há nada. Só o burburinho. Como um curta-metragem conseguiu arrebanhar tamanho alvoroço nesta noite me soa como um mistério insondável, mais insondável do que arqueólogos descobrirem, sei lá, o Santo Sepulcro, e ainda saírem da catacumba com alguma relíquia. Muita gente, e mesmo com esse alvoroço convidado por e-mail e diretamente, contaram-me, a acompanhante conseguiu abrir a porta do toilette e chafurdar lá dentro. Quiçá para lavar o rostinho mimoso. Quiçá.

Diana, a moça do nu frontal, é só sorrisos. Distribui-os fartamente. Um alvoroço vai se formando mais intensamente à medida que a hora de abrir a cordinha que dá acesso à sala vai se aproximando. A velhinha do meu lado se acotovela para ver o que diz o mostrador do seu relógio de pulso. Ela diz: "muito bonita a sua acompanhante". Eu sorrio para ela, em retribuição. O amigo diretor, de nome Maurício, não sabe nem para onde olhar. Ele aguarda ansioso pelo aplauso daquela gente toda, aquele povo que se acotovela incessantemente. Dá quase para não mais pisar com os pés no chão, tamanho o número de convidados. Para um curta-metragem.

A velhinha, ao meu lado, vai soltando suas teorias cinematográficas. Coisa de gente que não tem mais o que fazer, no meio daquilo tudo. Ouço com toda a paciência. Ela fala sobre Hitchcock, tece teorias sobre esse ou aquele filme de John Ford, exprime sentimentos sobre Antonioni. E em seguida, vendo todo o meu interesse, ela solta: "sua acompanhante, aquela que é tão bonita, está demorando, não?". Eu respondo com outro sorriso na face. Talvez a acompanhante esteja esperando um momento de ir ao sanitário, aguardando outras damas e acompanhantes na fila dentro do toilette, todas se acotovelando para enxaguarem seus rostinhos tão mimosos. Essas coisas de mulher.

No meio daquele povo, consigo erguer o pescoço, encontro o olhar do David, que fez a direção de fotografia do curta. Ele está no mesmo sufoco, com uma velhinha ao lado, tecendo teorias sobre cineastas de peso. Enquanto a minha aqui falava isso ou aquilo de Fellini e algo de Hawks, imagino que a velhinha ao lado do David devesse falar algo em torno de Cacá Diegues ou mesmo algum filme antigo da Cinédia. Não, Cinédia com certeza, não. Vera Cruz, quem sabe. Alguma produção do Adolfo Celli, ao menos. Mas com certeza, uma velhinha mais letrada em cinema nacional, que conseguisse, vez por outra, posicionar o filme do meu amigo diretor, de nome Maurício, no tempo e no espaço. Ao menos isso.

O calor é avassalador, naquele foyer. Meus pés já não tocam o chão. A acompanhante, que tanto trabalho teve para chegar à porta do toilette, e agora poderia perfeitamente se encontrar esperando uma fila para poder usar os serviços do ambiente, certamente estava em posição melhor. A não ser que houvesse outra velhinha, uma terceira, só para ela, e que estivesse distribuindo fartamente comentários sobre François Truffaut e o único filme dirigido por Flávio Rangel.
Não poderia ser possível que para todas as pessoas posicionadas naquele tremendo foyer caloroso houvesse uma velhinha, uma para cada. Seriam muitos comentários sobre cineastas e filmes de peso. Isso em plena pré-estréia do curta-metragem do amigo diretor, de nome Maurício, a bordo de sua atriz de nu frontal, a tal Diana. Seria um pensamento inimaginável, talvez só eu pensasse assim. Eu e o David, que ouvia a sua velhinha com toda a atenção. Muito a aprender, com certeza. Um diretor de fotografia experiente, e sua velhinha lateral.
Quem precisa de mais? "Será que sua acompanhante retorna?", diz a velhinha ao meu lado. Eu respondo com novo sorriso. Aliás, é um repertório de novos sorrisos a cada pergunta nova sobre a acompanhante. "Ela é sua esposa, é?" – ela pergunta. "Não" – digo eu – "é minha acompanhante". Muito provavelmente, muitas acompanhantes se meteram no toilette para se resguardar daquele foyer sufocante. O relógio de pulso ficou em algum lugar, lá embaixo, entre o meu braço e a minha calça, é impossível acessá-lo. "Ela tem jeito de ser tão novinha, não é?", solta uma vez mais a velhinha ao lado. Um sorriso, e pronto.

Há momentos na vida em que você não sabe se é mais intrigante, mais instigante chafurdar num toilette durante uma pré-estréia de curta-metragem ou tentar dar um abraço no cineasta, em seu segundo filme em bitola 35mm. Penso no meu carro, lá fora, estacionado. Chove, e as pessoas ainda mais que se acotovelam no saguão, na porta de vidro, com a mocinha distribuindo fartamente os prospectos do filme, e o foyer onde todos nos encontramos, ali, cada um com sua velhinha ao lado, cada um com suas teorias sobre Cinema Novo, Nouvelle Vague, sobre o Neo-Realismo italiano e por aí vai, tudo de graça, ao lado, basta manter o ouvido atento.
Pensava agora no meu relógio. Que horas seriam?
Quantos minutos faltariam para o encerramento da sessão do longa-metragem do John Cassavetes, lá dentro, para depois de toda a platéia desse filme se dissipar, venhamos nós a entrar para finalmente assistirmos à nudez frontal da tal Diana, no curta-metragem? Seria um momento mágico, esse, em que o público ali reunido por convites feitos em e-mails e telefonemas diretos, viesse a se desgarrar de suas velhinhas laterais. Elas e seus comentários pertinentes sobre cineastas de grande peso. Algo teria de acontecer, como num bom ponto de virada. Mas não, inexiste ponto de virada. O que existe é um calor exasperante, meus pés que não tocam mais o chão, o relógio inacessível, o carro lá fora – na chuva – e aquela platéia atocaiada para ver uma nudez frontal. Nada mais.

Assim, rezando para que algo ali me salvasse de ouvir teorias da velhinha sobre o novo filme de Wong Kar-Wai e a mais nova comédia de Woody Allen, o diretor do curta-metragem, o meu amigo Maurício, todo sorrisos, ergue um copo, sabe-se lá como, e diz a todos o seguinte: "infelizmente o meu filme não será exibido hoje, por que o aparelho de DVD não está funcionando bem, me informou o gerente, e minha produção não trouxe a cópia em lata."
Pensei eu – depois de me perder de uma acompanhante que chafurdou no
toilette e de ouvir todos os comentários a respeito de Marilyn Monroe e Lucille Ball de uma velhinha ao meu lado, o diretor do curta-metragem, em plena pré-estréia nacional do filme, vem e me diz só isso?
E ele complementa: "O gerente do cinema jura que os convites de vocês, para hoje, servirão perfeitamente para amanhã! E eu os esperarei com todo o carinho, podem ter certeza! Foi uma honra enorme ter tido vocês todos aqui, nesta noite gloriosa, agradeço muitíssimo em meu nome e em nome de toda a equipe do meu filme!".
Nem mesmo em nome da atriz, de nome Diana, que nada levou de dinheiro para fazer um nu frontal adiado para amanhã, nem mesmo em nome do elenco dele o meu amigo diretor agradeceu. Talvez seja parte do plano, esse tipo de estratégia de marketing. Você convence todos a virem à sua pré-estréia, todos se acotovelam no foyer, todos ficam à mercê de suas velhinhas laterais, todas muito bem letradas em História do Cinema, e todas as possíveis acompanhantes que chafurdam no toilette, cada uma esperando para lavar o seu rostinho mimoso, e o filme mesmo, que é bom, não acontece. Acho que isso não deveria ter lugar na época do Billy Wilder. Talvez eu até devesse perguntar à minha velhinha particular.
Talvez até mesmo houvesse velhinhas laterais, naqueles dias, que lessem Louella Parsons e outros cronistas de Hollywood, e que tivessem seus comentários na ponta da língua, para o cinéfilo mais próximo ouvir. Talvez sempre existissem essas velhinhas, acantonadas nos saguões, prontas para capturarem a próxima vítima que irá ouvi-las até o filme começar, sempre prontinhas a fazer as perguntas mais insípidas, em meio a tantas opiniões sobre Cinema. Talvez eu devesse fazer uma tese de doutorado sobre elas. Talvez eu devesse voltar amanhã.

***
Copyright 2007 Ruy Jobim Neto

Conto Primeiro:

O HOMEM QUE SONHAVA SEXTANTES

de RUY JOBIM NETO


Vila de São Paulo de Piratininga, 1623.

Martim Xavier de Sá era um João Ninguém, um sujeito desvalido, daqueles que não valia uma pataca sequer. Não exatamente por ser mau caráter, que não era. Mas devido à sua péssima ascendência – filho de degredado cristão novo e parido de uma meretriz do além-mar, realmente não poderia ser muita coisa. Quase nada, na verdade.

E naquelas paragens da vila de Piratininga, terreno duro, atravessado por rios imensos, bons de navegar para os sertões, é que Martim não tinha lá muito que oferecer. Não sabia profissão alguma, não tinha leitura, era péssimo nas contas e não tinha posses. Dormia ao relento e se alimentava aqui ou ali de alguma beatitude vizinha. Mal sabiam o nome dele, gritavam qualquer coisa. Aquele homem tinha que saber de algo, não era possível! Até mesmo a mais insípida besta de carga tem coisas a oferecer.

O padre jesuíta que o alimentava com farinha de mandioca e leite de cabra quando Martim adoecia não via com bons olhos como tratavam aquele pobre coitado – que de coitado parecia que não tinha nada, diziam que era um esperto, isso sim – e levava consigo a certeza de que por trás daquela figura poderia existir um grande homem. Essa era a dúvida. Que bem valioso ao vilarejo um sujeito como aquele poderia trazer? As poucas crianças da vila zombavam dele, escarneciam, os índios faziam olhos moucos, ninguém acreditava em Martim Xavier de Sá.

Uma vez ele se apaixonou. Foi em vão. A rapariga, recém-chegada de uma caravela, era esposa de um ferreiro. O marido adoeceu certa época, e a moça vislumbrava a viuvez. Martim achou que havia alguma chance. Ora, uma mulher que acabara de chegar do Reino certamente não se enfiaria com um desvalido, nascido sabe lá Deus onde. E ainda mais que era esposa de homem confiável na vila. Todos viram o desespero do João Ninguém, mas ele aprendeu rápido que o esquecimento seria o melhor remédio. Calava-se por dias a fio. Não ouvia as pessoas nem mesmo quando elas acertavam o seu nome. Assim era o Martim.

E o que aparentemente não possuía saída para o rapaz foi exatamente o revés de que ele precisava para dizer a que veio. Foi a coisa mais inusitada, ninguém podia imaginar o que estava para acontecer, ainda mais naqueles tempos complicados.

Os homens iam para os sertões. Jamais convidariam Martim para o que fosse, ele não teria utilidade alguma diante dos perigos e necessidades. Um mosquete ele não tinha como usar, mal aprendera. Tinha aversão a cavalos, aos poucos que havia. E um dia dormiu ao relento, novamente. Um comerciante, forte e beberrão, de nome ignoto, amarrara o João Ninguém ao corpo de um muar. E se ria todo, quando deu partida no animal, atiçando com um tapa nas ancas. Os berros enlouquecidos de Martim se misturavam às risadas do ignoto, era um espetáculo deprimente. O muar disparou para fora da vila, abriram rapidamente os portões, como que querendo expulsar Martim para bem longe das paliçadas protetoras de Piratininga. O susto passaria a terror. Os carijós estariam alerta com suas lanças envenenadas. Mas ninguém se apiedou.

Dias depois, um batedor avisou que vira Martim lá pelos lados do Jaraguá, bem no alto, todo ferido, sozinho, quase sem poder andar. O muar, disse o batedor, havia desaparecido. Como Martim teria atravessado o Tietê, todo caudaloso, era um mistério. Sabia-se que ele era péssimo em navegação. Aí é que residia o engano. Sim, Martim era péssimo nas artes dos rios, mal sabia comandar uma canoa, não tinha lá talentos para muita coisa. Chegou a um ponto em que até mesmo o jesuíta desistira de se preocupar com ele. Era aquilo mesmo, nada mais.

O que não sabiam de forma alguma sobre ele era que Martim sonhava. E mesmo nas suas incapacidades atestadas por todos da vila, o João Ninguém sabia muito bem o que fazia, onde fazia e por que, mas tudo acontecia apenas em seus sonhos, quando deitava ao relento. E sabia muita coisa, mas nada que ele pudesse compreender com exatidão. Nada que ele soubesse explicar, ou nada que pessoa alguma tivesse lhe perguntado, por mero desinteresse por ele. Martim tinha, sim, algo a oferecer. Ninguém havia apenas dado a ele chance alguma.
Durante os sonhos, o João Ninguém tinha consciência plena de onde estava. Ele subia montanhas e rios, sorria enquanto devorava nuvens, acenava direções com uma precisão jamais vista. Mas ninguém havia perguntado a ele. E Martim continuava sonhando. Havia toda uma música que ele não sabia entoar, mas que estava lá. No fundo dos seus sonhos, Martim avistava montanhas muito longínquas, rios enormes, muito caudalosos, e ele podia ver com clareza as rochas, as quebras dos rios, as árvores e seus pássaros. Era um mundo à parte, o de Martim. Era o seu refúgio num mundo nada.

Numa dessas tardes em que ele dormiu ao relento, ainda ferido e cansado em pleno morro do Jaraguá, duas coisas aconteceram. Primeiramente, ele nem se apercebeu da presença de todo um grupo de carijós perigosíssimos. Os silvícolas olharam, espreitaram, tentaram ouvir os sonhos de Martim. Apenas um, o mais moço deles, chegou perto e conseguiu ouvir estórias. Estórias de um mundo distante. Era o mundo que Martim sonhava. E quando os índios e suas zarabatanas se foram, Martim continuou o trajeto de seu novo sonho. E viu muito ouro, ouro que ele sabia nunca seria para ele, mas para algum colégio de padres, uma arca velha ou mesmo para os espanhóis.

Martim estava longe de sua vila de Piratininga, exilado juntamente com uma mula, ou da mesma forma que ela. Estava no alto do morro em que as mulheres e crianças acenam para seus maridos quando adentram o sertão. De lá, do alto, ele podia ver tudo, e via mais além. Ele via as montanhas do Rei Branco, as jazidas de ouro e prata que todos buscavam. Mas o João Ninguém sabia que era sonho, e por isso se guardava para não rirem dele. “Como é? O Martim agora se meteu a vislumbrar caminhos que levam ao Peru?” “Qual o quê!”, ele é um desvalido, um filho de cristão novo degredado com meretriz do além-mar, o que pode saber ele?

Mas Martim sabia, no fundo ele sabia. Mas o que faria ele com toda essa sapiência? Poderiam matá-lo sem piedade alguma se soubessem o que ele tem dentro de seus sonhos. Era uma vida dura, aquela. Qualquer que tivesse o que Martim possuía poderia virar de uma hora para outra ou espião ou grande proprietário ou um traidor. O talento do João Ninguém não servia ao menos para tracejar um mapa, pelo que muita gente morreria ou mataria, naqueles tempos. Ainda mais o mapa dos sonhos de Martim. Ele era, certamente, o homem errado no lugar errado e na época errada.
Assim, noutra dessas tardes dormindo ao relento, assolado pelo frio da alta montanha e pelos ventos gélidos que o conduziam ao sono, Martim novamente sonhou. E sonhou que avistara um jesuíta cercado por curumins. Os guris viram que Martim sonhava, e levaram o padre até o exilado. E sorrindo muito, docemente, sem escárnio algum, os meninos brincavam com os pés doloridos do João Ninguém, mexiam em suas coisas, poucas que eram. O padre os recuou e se colocou a ouvir os sonhos do rapaz.

Foi a primeira vez que Martim acenara. Era um caminho perfeito, ainda melhor que o de Peabiru que muitos já haviam percorrido em direção aos altiplanos andinos. Martim, em seu novo sonho, concedera uma trilha solitária, enevoada, muito sublime, repleta de cachoeiras e pássaros, multifacetada por pontilhões e rios intermitentes. Para lá do Pantanal, muito além das quedas de Iguaçú, subindo pelos campos do Paraguai, sem parar um instante sequer. E o sonho permitia a límpida caminhada a pé às primeiras guaritas incas, ou o que sobraram delas. Alguns soldados espanhóis posicionavam-se aqui ou ali, guardando o território. Tordesilhas, para Martim, como para muitos daqueles homens desvalidos de então, era nada mais que um passado inócuo.

E Martim seguia, andava, devorava nuvens enquanto sorria, e o jesuíta anotava em seu diário tudo o que o sonho determinava. Tudo era muito preciso. O jesuíta retornara ao altiplano, de onde voltava e tinha aprendido lições sobre o cosmos, a luz e a arte da levitação. Agora o objetivo era outro. Só Martim sabia e não sabia ao mesmo tempo. Ao final do sonho, como numa pontuação precisa, o João Ninguém se despede. E não pretendia mais voltar a Piratininga. Nem seguir caminho com o jesuíta ou os curumins. Ele fez um pedido, e foi atendido plenamente.
O sonho de Martim não mais acena caminhos no alto do Jaraguá, como antes fizera, mas em algum ponto que não se pode precisar não somente ele, como tantos outros desvalidos, Joões Ninguém, tantos como ele estão unidos às plantas e aos pássaros desta América. Ele, afinal, teve o enterro cristão que não lhe dariam em momento algum de sua vida.

FIM

Copyright 2007 Ruy Jobim Neto