quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Conto quarto:

QUARTA-FEIRA, COMO ERA ANTES

de RUY JOBIM NETO



Eu mal pude me esconder debaixo das cobertas. “Medrosa!” – berrou meu irmão, quase me dilacerando o ouvido. “Meninas são medrosas!”. Ele continuava com a ladainha. Chovia lá fora e ventava muito. Mas era quarta-feira, isso ninguém tirava da gente. Os fios de cabelo estavam todos embaraçados, eu mal conseguia encontrar meu lacinho. Mamãe mandara a Augusta nos chamar. “Medrosa!” – o chato do João Paulo não parava com aquilo, até dava nervoso. “Medrosa de quê, menino?” – perguntei mesmo! Meninos não têm problema com vestidinhos, com sapatinhos, lacinhos, mas em compensação são chatos até não agüentar mais!

Augusta aparecia na porta. “Estou de férias, Augusta!”, resmunguei com cara de sono. Mas o café da manhã era religioso, naqueles tempos. “Sabe que dia é hoje?” – pergunta a governanta. Claro que eu sabia. E mal via a hora de sair à varanda só para esperar o rapazinho da entrega chegar. Ah! Eu ficava toda nervosa, não parava quieta. “Eduarda mandou foto! Eduarda mandou foto!” Sim, e daí, menino chato? Mandei foto, sim, e escrevi uma cartinha! Já pensou se eles publicam? Papai teve que pedir que viessem dois exemplares. Um “Tico-Tico” só pra mim, um “Tico-Tico” só pro meu irmãozinho, esse chato, exatamente porque uma vez chorei dois dias inteiros. Ele rasgou toda uma edição, eu não me conformei com aquilo. E ele ria feito um diabrete!

A revista demorava. Ah, como demorava. E eu comia biscoitinhos com Reco-Reco e Bolão, limpava os lábios com a Faustina, eu tomava chá com Chiquinho e Jagunço. E com o moleque Benjamin, também. Nós tivemos por aqui o Nestor, que morou muito tempo em nossa casa, e era nosso moleque de recados, a mãe dele era escrava. Enfim, eram férias, e toda quarta-feira sem falta, aquela turminha toda aparecia pra gente brincar. João Paulo fazia das suas, levava sempre uma sova. Não parava quieto, eu achava até que ele era o próprio Chiquinho encarnado. Como era bom estar de férias, nem ao menos a aula de piano era tão cedo assim. E nas quartas-feiras, eu não gostava mesmo de me sentar ao piano e tocar Chopin ou Liszt. Eu ficava doidinha esperando a revista. Ainda mais aquela. Nem os pensamentos ficavam quietos, era tudo conturbado!

Meu pai já havia saído para o trabalho, todo sisudo, todo sério, atrás daquele bigode imenso. O motorista dele era sempre muito gentil e ouvia todas as lamúrias do meu pai, aquelas coisas dos negócios dele, de café e do porto. Eu não entendia nada, só queria saber da minha revista. “Vê se come direito, menina! Eduarda, é melhor mastigar seu pão com geléia com calma, senão você se engasga!” – e em meus pensamentos eu fazia um “tsc,tsc” para as preocupações da Augusta. Governanta é sempre governanta, parece que nunca dorme. “Que música você mais gosta, nesta vida?” – perguntei pra ela. Ela não sabia responder. Você não canta, Augusta? Uma governanta é proibida de cantar? Nem nos seus sonhos? Eu acho que uma vez a vi cantarolar “Carneirinho, carneirão”, ou algo parecido. Acho que era isso. Vai ver que ela cantarolava quando fazia aqueles bolinhos deliciosos dela.

Perto do fim de tarde, todo dia, o rádio tinha um programa de que o João Paulo gostava muito, o “Quarto da Criança”, eram quinze minutos de historinhas infantis. Cada uma mais linda que a outra! A gente dormia cedo, naqueles tempos, mas às terças-feiras era delicioso dormir cedo! Só porque no outro dia vinha “O Tico-Tico” pra gente! E eu imaginando como ficaria minha fotinho na revista. Viria ao lado de que personagem? Eu adorava o ratinho curioso, era tão singelo e ao mesmo tempo tão esperto! Os contos, as páginas pra gente armar, as notícias de ginásios esportivos, eu gostava de tudo! E as canções, então! Eu adorava levar pro piano aquelas partiturinhas que eles publicavam! Minha mãe ficava louca, dizia que eu não queria mais ela. Que isso...Eu tocava era para ela mesma... “O Cravo brigou com a Rosa...”, essa eu amava tocar e tocar e tocar...Até o João Paulo vir de novo e me berrar algo no ouvido, e eu sair correndo atrás dele, como sempre fazia. Eram mesmo muito bons aqueles dias.

Do alto dos meus dez anos, eu sabia muito bem o que queria. Eram duas coisas: ser professorinha e a minha revista! As meninas comentavam no intervalo do grupo escolar sobre o que elas liam n’O Tico-Tico. E elas mandavam desenhos e poemetos. Eu era mais a música, mesmo. Nas aulas, tínhamos Latim e Francês, oui, eu falava, lia e escrevia com fluência incrível, era o xodó das professoras. Mas a revista vinha em Língua Portuguesa, mesmo, eu gostava mais ainda. Não precisava inventar nada, era do jeito que a gente falava, bem do nosso jeito.

Fiquei muito triste quando o Sr. Agostini morreu. Ele desenhou muita coisa na revista, até o nome dela foi ele o primeiro que fez. E eu bem que pedi uma vez ao meu pai “Papai, um dia o senhor me leva lá onde eles fazem a revista?”, e ele se ria todo, atrás daquele bigode imenso e sisudo dele, achava tudo aquilo uma fantasia infantil minha. Mas não era não. Eu precisava me certificar de que havia gente de verdade fazendo aquela publicação que eu tanto amava.

O entregador não vinha. Lá fora chovia muito e continuava ventando. Ah, quase que eu ponho minhas galochas só para sair à rua atrás de alguém que me vendesse um exemplar! Nunca uma espera me deixou tão nervosa! “Mas é assim mesmo, Eduarda, ou você não conhece o clima daqui?” Augusta tinha toda a razão. Era névoa, depois chovia, parava um pouco, e quando vinha o sol, que saísse debaixo, e eu com toda essa roupa! Era muito tecido para qualquer criança, era desconjuntado, mal dava pra brincar e correr, a roupa quase me petrificava. Meu irmão ficava olhando pela janela, pertinho das cortinas e do vestíbulo. Eu me juntava a ele, começava a olhar a rua, e só via os pingos na vidraça.

Então pensei – o sono me domina. É quarta-feira, eu sei, mas de que adianta eu ficar aqui, olhando pela janela, e vendo os vendedores de pão descendo e subindo as ruas, e todas aquelas pessoas tentando escapar do chuvisco e da ventania? “Por que você não dorme, Eduarda, e quando menos esperar, terá uma revista bem do seu ladinho, assim, pra você ler, recortar e cantar as musiquinhas?” A idéia da Augusta fazia sentido, mas era a minha foto que eu esperava, embora o sono viesse com um jeito assim que nem te conto. “Dorme um pouquinho!”. E eu bocejava com boca bem aberta, e o meu irmãozinho ali ao lado, no parapeito da janela, só de me olhar já bocejava junto. Ótimo, assim ele parava um pouquinho de me azucrinar, de me chamar de medrosa e de berrar no meu ouvido e fugir depois.

“Eduarda!” – a voz veio da porta principal. Era o papai que chegava e trazia exatamente nossas revistas, a minha revista! “O Tico-Tico!!!!”, berrou o meu Chiquinho de plantão. Eu e João Paulo corremos até o papai, ele nos abraçou, e meus olhinhos nem piscavam mais, estavam completamente acesos. Naquela manhã interminável de quarta-feira, o sono já tinha sido dispensado, eu não queria mais saber dele. Era só para a revista que eu tinha olhos! E folheamos tudo de ponta a ponta! Eu sempre lia algumas coisas para o João Paulo, até que ele aprendesse os seus primeiros latins, mas aquele dia era muito especial. “Cadê a sua foto, Eduarda?”. Eu procurei, nós procuramos, todos nós procuramos, e vasculhamos, e reviramos a revista inteira. Ué, não saiu? Eu fiquei arrasada. Até o chato do meu irmãozinho percebeu que eu não estava para conversa, nem tentou me animar. Dormi, ao menos até à aula de piano. Liszt e Chopin em vez de minha foto ou minha carta. Acho que nunca saiu a minha foto. Ou minha paciência se fora à medida que eu crescia. Medrosa de quê, menino? Só se for medrosa do relógio, do tempo, de pensar que não seria mais criança para sempre. Mas como era bom!

FIM

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Conto Terceiro:

LUZ NO LADRILHO
de Ruy Jobim Neto



A porta entreaberta. O menino aguarda, espreita. Ele se percebe numa escuridão apenas cortada por luminescências aqui e ali. Olha. Nem um pio ele solta. Nem a respiração ele pretende que se demonstre, nem uma tosse. Aguarda, sua frio, espera instantes mágicos. O que mais poderia ser diante de seus olhos pueris uma coisa linda? A prima que veio da cidade? Os cabelos lisos e escuros, a pele suave e branquinha, os olhos morenos por trás dos óculos sutis, a boca que dilata palavras ora doces, ora amargas, ora humanas? Marcela? A companhia a cavalo, a faca que espalha manteiga no pão logo cedo de manhã, a canção na varanda? Quanta coisa ao mesmo tempo, tudo lhe vem à cabeça!

Marcela tomava banho de madrugada, ele sabia. E queria ver algo a mais do que o ombro que transparece, o início do colo, o mexer dos braços fininhos, a suavidade dos gestos, todos muito bem medidos. A mulher sabe quando é observada, nisso há um conhecimento ancestral, aprendem com suas gerações para trás. Todas elas. E Marcela não estava de fora desse rol. A juventude que ela exala o transgride, deixa o menino atônito, sem vocábulo. Paixão juvenil? Era a primeira masturbação com motivo real e imediato, descobrindo os pêlos, o membro, o olhar. Porque é através do olhar que a coisa se dá, ele acabará descobrindo. O mesmo olhar de que se nutre Marcela e todas elas, as mulheres.

O banho. O som do chuveiro. Mas antes de tudo, a roupa que se coloca à parte. Ele imagina, o menino ouve, desespera-se, exaspera-se, teme ser visto pela avó, o que diria ela? Que a prima o levaria para outros descaminhos? Todos dormem, ele se certificara, inclusive a avó, principalmente. Roncos são ouvidos. Roncos e o chuveiro. Aquilo era de enlouquecer. O coração pulsa, é evidente. A prima está nua, pensa ele, nua e linda justamente como quando está vestida, só que melhor. Como será? Como será Marcela? Que lindos segredos ela guarda por trás de vestidinhos e camisas tão lânguidas quanto agressivas? As perguntas são infinitas, e todas se fazem presentes, insuportáveis.

A janela por fora da casa seria muito óbvia. O barulho de objetos faria a garota sair de seu banho. Marcela não cantarola agora, como faz de tardinha, na varanda, quando ela entoa umas modinhas da cidade, acompanhadas pela avó. O mistério de uma jovem mulher nada mais é do que o conjunto lindo de sua pele, o menino já esperava há tempos ali, não dormira. Na realidade, ele planejara aquilo, ele medira os passos, as ações, ouvira todas as frases de Marcela: “eu adoro tomar banho de madrugada” ou “ah, se eu pudesse andar nua pela casa, aqui, à noite”, aqueles comentários entre as meninas, entre as irmãs e a prima.

Nada mais comum do que o menino e a prima longínqua, agora completamente desnuda, nada mais excitante. Ela olharia para ele? Ele não teria chance alguma, pensa. E sabe disso, e sabe o quão distante está aquela criatura dele. O que se poderia fazer para ter Marcela em seus braços, enrolar-se infinitamente naquela pele, deitar sobre os cabelos lisos e escuros, deixar-se devorar pelos olhos morenos e cheios de novidades? Um homem, para amar Marcela, precisaria ter coisas, ser coisas, mas não ele, pensava. Não ele, o menino, ali, seminu e masturbante, silencioso na sua curiosidade.

Marcela está à vontade, as jovens sempre estão. Mesmo quando não fazem, seus gestos são redondos, quase lascivos. Mas são de uma precisão que atormenta. De dia, o que quer que façam tem seus objetivos, seus significados. Meninos são tolos o suficiente para não perceberem coisa alguma. E sonham, imaginam qualquer coisa, facilidades, frases sem palavras perfeitas, tudo cai feito um buraco. Há uma distância insolúvel. Meninos exasperam, as jovens se deliciam. A luz no ladrilho diz coisas. A porta indica saída de Marcela, à espreita novamente o menino se coloca. Paralisa-se. O que pode acontecer?

Uma toalha. A roupa ficou sobre algum móvel, um varalzinho, algo assim. Marcela ainda tem a pele úmida, gotas ainda quentes se espalham pelos ombros e descem pelos braços fininhos. Cabelo liso e respingando. Cheiro de prima banhada. Saberá ela da presença dele, ali, à espera de algo que nem ele mesmo sabe o que é? O que ele ouvira de Marcela se concretizaria? Mulheres têm coragem, a mãe dele tem, enfrentou muita coisa, mas a mãe nem passa pela cabeça agora. Marcela. A pele e a toalha. E a sensação de perambular pelos corredores, à noite, roncos adentro, luminescências aqui e ali. A ousadia a olhos vistos.

Os pequenos pés que de dia embalam botinas e sapatinhos nas festas agora estão à mostra, os tornozelos finos, todo o conjunto de que se forma Marcela. Passos de felino, inaudíveis, deliciosos, brincantes. O menino sua gelado, neste momento. Ele a perde de vista, ela faz curvas na escuridão, vai para outras saletas, vasculha corredores, graciosamente ela corta a noite. A escada, a cadeira de balanço, a lareira apagada, uma luz que vem pela fresta da janela da sala. O menino sente seus ossos estalarem, qualquer som é perigoso, Marcela é quem determina.

Sombra e beleza se completam, qualquer fio de luz descobre Marcela, é muito tarde, ou muito cedo, todos dormem apesar disso. Mesmo os gatos sabem quando miar, e não miam quando vêem dois corpos nus após fazerem amor, é algo da sabedoria milenar deles. O que farão diante de uma jovem envolta em toalha, ou de um menino espreitando essa mesma jovem é algo que nem os livros sabem dizer. O menino se deita de bruços no chão. Não vê Marcela, mas vê a toalha. Ele sabe agora, ela se encontra linda. O menino quer muito se aproximar. Quiçá a prima esteja deitada no sofá das festas e das conversas matinais, ou mesmo na cadeira de balanço, dizendo coisinhas desconexas e dignas de ouvir.

O sono é algo que não vem, nem o bocejo, só o coração pulsando feito louco. O corpo inteiro parece uma pilha, uma explosão, um moinho descontrolado. Uma risada baixinha ele ouve. Como quer saber do que se trata! Um alívio, respiração, tessitura de voz, Marcela fazendo e falando suas coisas, só dela. Que vontade de saber, de compartilhar, mas ela é rápida nas palavras como quando enrola suas madeixas com os dedos. Paixão de menino? Os olhos espertos que vêm à mente, o cheiro de prima banhada, os pés de feltro que cruzam a noite na casa, que aventura! O coração pulsa, quase explode, medo completo de ser visto e reconhecido. Marcela agora tem outro gosto, não somente o de passar manteiga pelo pão logo cedo de manhã, nem o das cantigas na varanda. Há sabor. Muito sabor.

Os pés dela se movem, rápidos, lépidos. O menino fica atônito. O corpo nu da prima vem na direção do corredor, vem, ele vem, sem parar. Ele fecha os olhos, é o fim, será descoberto, o pavor completo. Mas por entre os dedos, Marcela se deixa avistar, ela vira para a cozinha, rápida e nua. Sorriso, ele ouve. Gole d’água no meio da madrugada. O menino quase tem uma síncope, o corpo dele praticamente se paralisa. Ela é linda, linda. Não a pode venerar, nem idolatrá-la, quanto menos imaginar coisas, mas ele imagina. Marcela não. Ela é mulher, sente de outras formas a vida, tem mais os pés no chão, aparentemente. A toada que a embala segue noutro curso, é a terra que a move e faz ter a beleza dos pássaros que alçam vôo.

Os segundos são eternos naquele pedaço de noite, naquela luminescência, naquele cricrilar da mata selvagem, na juventude do novo dia. Ele fecha os olhos. Deita o rosto sobre o chão, sorri. Quando abre os olhos, depois de respirar sem poder, vê dois pés de lado para ele, paralelos à cabeça, juntos. Marcela. Olhando para cima, a presença da toalha, ilustre traidora. A prima se agacha, olha bem dentro dos olhos, pupila com pupila, naquele naco de luz que nem se avoluma direito. Um sorriso. Ela toca delicadamente dois dedos nos lábios, beija-os e depois os leva até os lábios do primo, ali, deitado. Ela se levanta tão logo encerre o gesto e volta para o seu quarto. Ele permanece ali, deitado, rosto no chão, o toque dos dedos dela nos lábios, o beijo transmitido, proibido, cantiga na varanda, manteiga no pão, a imagem do corpo nu, os grilos da noite, a pele de prima banhada, a luz no ladrilho. Nem se sabe mais como será amanhã.

FIM