terça-feira, 28 de agosto de 2007

Conto Primeiro:

O HOMEM QUE SONHAVA SEXTANTES

de RUY JOBIM NETO


Vila de São Paulo de Piratininga, 1623.

Martim Xavier de Sá era um João Ninguém, um sujeito desvalido, daqueles que não valia uma pataca sequer. Não exatamente por ser mau caráter, que não era. Mas devido à sua péssima ascendência – filho de degredado cristão novo e parido de uma meretriz do além-mar, realmente não poderia ser muita coisa. Quase nada, na verdade.

E naquelas paragens da vila de Piratininga, terreno duro, atravessado por rios imensos, bons de navegar para os sertões, é que Martim não tinha lá muito que oferecer. Não sabia profissão alguma, não tinha leitura, era péssimo nas contas e não tinha posses. Dormia ao relento e se alimentava aqui ou ali de alguma beatitude vizinha. Mal sabiam o nome dele, gritavam qualquer coisa. Aquele homem tinha que saber de algo, não era possível! Até mesmo a mais insípida besta de carga tem coisas a oferecer.

O padre jesuíta que o alimentava com farinha de mandioca e leite de cabra quando Martim adoecia não via com bons olhos como tratavam aquele pobre coitado – que de coitado parecia que não tinha nada, diziam que era um esperto, isso sim – e levava consigo a certeza de que por trás daquela figura poderia existir um grande homem. Essa era a dúvida. Que bem valioso ao vilarejo um sujeito como aquele poderia trazer? As poucas crianças da vila zombavam dele, escarneciam, os índios faziam olhos moucos, ninguém acreditava em Martim Xavier de Sá.

Uma vez ele se apaixonou. Foi em vão. A rapariga, recém-chegada de uma caravela, era esposa de um ferreiro. O marido adoeceu certa época, e a moça vislumbrava a viuvez. Martim achou que havia alguma chance. Ora, uma mulher que acabara de chegar do Reino certamente não se enfiaria com um desvalido, nascido sabe lá Deus onde. E ainda mais que era esposa de homem confiável na vila. Todos viram o desespero do João Ninguém, mas ele aprendeu rápido que o esquecimento seria o melhor remédio. Calava-se por dias a fio. Não ouvia as pessoas nem mesmo quando elas acertavam o seu nome. Assim era o Martim.

E o que aparentemente não possuía saída para o rapaz foi exatamente o revés de que ele precisava para dizer a que veio. Foi a coisa mais inusitada, ninguém podia imaginar o que estava para acontecer, ainda mais naqueles tempos complicados.

Os homens iam para os sertões. Jamais convidariam Martim para o que fosse, ele não teria utilidade alguma diante dos perigos e necessidades. Um mosquete ele não tinha como usar, mal aprendera. Tinha aversão a cavalos, aos poucos que havia. E um dia dormiu ao relento, novamente. Um comerciante, forte e beberrão, de nome ignoto, amarrara o João Ninguém ao corpo de um muar. E se ria todo, quando deu partida no animal, atiçando com um tapa nas ancas. Os berros enlouquecidos de Martim se misturavam às risadas do ignoto, era um espetáculo deprimente. O muar disparou para fora da vila, abriram rapidamente os portões, como que querendo expulsar Martim para bem longe das paliçadas protetoras de Piratininga. O susto passaria a terror. Os carijós estariam alerta com suas lanças envenenadas. Mas ninguém se apiedou.

Dias depois, um batedor avisou que vira Martim lá pelos lados do Jaraguá, bem no alto, todo ferido, sozinho, quase sem poder andar. O muar, disse o batedor, havia desaparecido. Como Martim teria atravessado o Tietê, todo caudaloso, era um mistério. Sabia-se que ele era péssimo em navegação. Aí é que residia o engano. Sim, Martim era péssimo nas artes dos rios, mal sabia comandar uma canoa, não tinha lá talentos para muita coisa. Chegou a um ponto em que até mesmo o jesuíta desistira de se preocupar com ele. Era aquilo mesmo, nada mais.

O que não sabiam de forma alguma sobre ele era que Martim sonhava. E mesmo nas suas incapacidades atestadas por todos da vila, o João Ninguém sabia muito bem o que fazia, onde fazia e por que, mas tudo acontecia apenas em seus sonhos, quando deitava ao relento. E sabia muita coisa, mas nada que ele pudesse compreender com exatidão. Nada que ele soubesse explicar, ou nada que pessoa alguma tivesse lhe perguntado, por mero desinteresse por ele. Martim tinha, sim, algo a oferecer. Ninguém havia apenas dado a ele chance alguma.
Durante os sonhos, o João Ninguém tinha consciência plena de onde estava. Ele subia montanhas e rios, sorria enquanto devorava nuvens, acenava direções com uma precisão jamais vista. Mas ninguém havia perguntado a ele. E Martim continuava sonhando. Havia toda uma música que ele não sabia entoar, mas que estava lá. No fundo dos seus sonhos, Martim avistava montanhas muito longínquas, rios enormes, muito caudalosos, e ele podia ver com clareza as rochas, as quebras dos rios, as árvores e seus pássaros. Era um mundo à parte, o de Martim. Era o seu refúgio num mundo nada.

Numa dessas tardes em que ele dormiu ao relento, ainda ferido e cansado em pleno morro do Jaraguá, duas coisas aconteceram. Primeiramente, ele nem se apercebeu da presença de todo um grupo de carijós perigosíssimos. Os silvícolas olharam, espreitaram, tentaram ouvir os sonhos de Martim. Apenas um, o mais moço deles, chegou perto e conseguiu ouvir estórias. Estórias de um mundo distante. Era o mundo que Martim sonhava. E quando os índios e suas zarabatanas se foram, Martim continuou o trajeto de seu novo sonho. E viu muito ouro, ouro que ele sabia nunca seria para ele, mas para algum colégio de padres, uma arca velha ou mesmo para os espanhóis.

Martim estava longe de sua vila de Piratininga, exilado juntamente com uma mula, ou da mesma forma que ela. Estava no alto do morro em que as mulheres e crianças acenam para seus maridos quando adentram o sertão. De lá, do alto, ele podia ver tudo, e via mais além. Ele via as montanhas do Rei Branco, as jazidas de ouro e prata que todos buscavam. Mas o João Ninguém sabia que era sonho, e por isso se guardava para não rirem dele. “Como é? O Martim agora se meteu a vislumbrar caminhos que levam ao Peru?” “Qual o quê!”, ele é um desvalido, um filho de cristão novo degredado com meretriz do além-mar, o que pode saber ele?

Mas Martim sabia, no fundo ele sabia. Mas o que faria ele com toda essa sapiência? Poderiam matá-lo sem piedade alguma se soubessem o que ele tem dentro de seus sonhos. Era uma vida dura, aquela. Qualquer que tivesse o que Martim possuía poderia virar de uma hora para outra ou espião ou grande proprietário ou um traidor. O talento do João Ninguém não servia ao menos para tracejar um mapa, pelo que muita gente morreria ou mataria, naqueles tempos. Ainda mais o mapa dos sonhos de Martim. Ele era, certamente, o homem errado no lugar errado e na época errada.
Assim, noutra dessas tardes dormindo ao relento, assolado pelo frio da alta montanha e pelos ventos gélidos que o conduziam ao sono, Martim novamente sonhou. E sonhou que avistara um jesuíta cercado por curumins. Os guris viram que Martim sonhava, e levaram o padre até o exilado. E sorrindo muito, docemente, sem escárnio algum, os meninos brincavam com os pés doloridos do João Ninguém, mexiam em suas coisas, poucas que eram. O padre os recuou e se colocou a ouvir os sonhos do rapaz.

Foi a primeira vez que Martim acenara. Era um caminho perfeito, ainda melhor que o de Peabiru que muitos já haviam percorrido em direção aos altiplanos andinos. Martim, em seu novo sonho, concedera uma trilha solitária, enevoada, muito sublime, repleta de cachoeiras e pássaros, multifacetada por pontilhões e rios intermitentes. Para lá do Pantanal, muito além das quedas de Iguaçú, subindo pelos campos do Paraguai, sem parar um instante sequer. E o sonho permitia a límpida caminhada a pé às primeiras guaritas incas, ou o que sobraram delas. Alguns soldados espanhóis posicionavam-se aqui ou ali, guardando o território. Tordesilhas, para Martim, como para muitos daqueles homens desvalidos de então, era nada mais que um passado inócuo.

E Martim seguia, andava, devorava nuvens enquanto sorria, e o jesuíta anotava em seu diário tudo o que o sonho determinava. Tudo era muito preciso. O jesuíta retornara ao altiplano, de onde voltava e tinha aprendido lições sobre o cosmos, a luz e a arte da levitação. Agora o objetivo era outro. Só Martim sabia e não sabia ao mesmo tempo. Ao final do sonho, como numa pontuação precisa, o João Ninguém se despede. E não pretendia mais voltar a Piratininga. Nem seguir caminho com o jesuíta ou os curumins. Ele fez um pedido, e foi atendido plenamente.
O sonho de Martim não mais acena caminhos no alto do Jaraguá, como antes fizera, mas em algum ponto que não se pode precisar não somente ele, como tantos outros desvalidos, Joões Ninguém, tantos como ele estão unidos às plantas e aos pássaros desta América. Ele, afinal, teve o enterro cristão que não lhe dariam em momento algum de sua vida.

FIM

Copyright 2007 Ruy Jobim Neto

Um comentário:

Walmir disse...

gosto desses mistérios metáforas que surgem no meio do fantástico, desses mistérios que percorrem a América Latina em suas misérias e sonhos.
paz e bem