terça-feira, 28 de agosto de 2007

Conto Segundo:

CONVERSA DE FOYER
de RUY JOBIM NETO


Fui convidado para mais uma pré-estréia. Um filme de amigo meu, curta-metragem, num grande cinema da cidade. Sala cheia, muita gente, muito calor humano, cafezinho e pessoas que se acotovelam. Pessoas que não se conhecem. O máximo. A acompanhante, ao lado, diz que vai ao toilette. Espero, aguardo, atento. As pessoas continuam se acotovelando e exprimindo frases sobre o filme que ainda não viram, outras lêem o prospecto que a garota da produção, lá na porta do foyer, distribuía a todos que entravam. O semblante do diretor, de nome Maurício, demonstrava a satisfação. Ao seu lado, a atriz principal, Diana, que dizem – não só tem cena de nu frontal como também não recebeu cachê pelo trabalho.

A acompanhante consegue entrar no toilette. Eu me dirijo, ou pelo menos tento me dirigir ao diretor, de nome Maurício. Mas ele não me vê, ou faz que não me vê. Tem olhos só para sua atriz. E não há flashes, não há nada. Só o burburinho. Como um curta-metragem conseguiu arrebanhar tamanho alvoroço nesta noite me soa como um mistério insondável, mais insondável do que arqueólogos descobrirem, sei lá, o Santo Sepulcro, e ainda saírem da catacumba com alguma relíquia. Muita gente, e mesmo com esse alvoroço convidado por e-mail e diretamente, contaram-me, a acompanhante conseguiu abrir a porta do toilette e chafurdar lá dentro. Quiçá para lavar o rostinho mimoso. Quiçá.

Diana, a moça do nu frontal, é só sorrisos. Distribui-os fartamente. Um alvoroço vai se formando mais intensamente à medida que a hora de abrir a cordinha que dá acesso à sala vai se aproximando. A velhinha do meu lado se acotovela para ver o que diz o mostrador do seu relógio de pulso. Ela diz: "muito bonita a sua acompanhante". Eu sorrio para ela, em retribuição. O amigo diretor, de nome Maurício, não sabe nem para onde olhar. Ele aguarda ansioso pelo aplauso daquela gente toda, aquele povo que se acotovela incessantemente. Dá quase para não mais pisar com os pés no chão, tamanho o número de convidados. Para um curta-metragem.

A velhinha, ao meu lado, vai soltando suas teorias cinematográficas. Coisa de gente que não tem mais o que fazer, no meio daquilo tudo. Ouço com toda a paciência. Ela fala sobre Hitchcock, tece teorias sobre esse ou aquele filme de John Ford, exprime sentimentos sobre Antonioni. E em seguida, vendo todo o meu interesse, ela solta: "sua acompanhante, aquela que é tão bonita, está demorando, não?". Eu respondo com outro sorriso na face. Talvez a acompanhante esteja esperando um momento de ir ao sanitário, aguardando outras damas e acompanhantes na fila dentro do toilette, todas se acotovelando para enxaguarem seus rostinhos tão mimosos. Essas coisas de mulher.

No meio daquele povo, consigo erguer o pescoço, encontro o olhar do David, que fez a direção de fotografia do curta. Ele está no mesmo sufoco, com uma velhinha ao lado, tecendo teorias sobre cineastas de peso. Enquanto a minha aqui falava isso ou aquilo de Fellini e algo de Hawks, imagino que a velhinha ao lado do David devesse falar algo em torno de Cacá Diegues ou mesmo algum filme antigo da Cinédia. Não, Cinédia com certeza, não. Vera Cruz, quem sabe. Alguma produção do Adolfo Celli, ao menos. Mas com certeza, uma velhinha mais letrada em cinema nacional, que conseguisse, vez por outra, posicionar o filme do meu amigo diretor, de nome Maurício, no tempo e no espaço. Ao menos isso.

O calor é avassalador, naquele foyer. Meus pés já não tocam o chão. A acompanhante, que tanto trabalho teve para chegar à porta do toilette, e agora poderia perfeitamente se encontrar esperando uma fila para poder usar os serviços do ambiente, certamente estava em posição melhor. A não ser que houvesse outra velhinha, uma terceira, só para ela, e que estivesse distribuindo fartamente comentários sobre François Truffaut e o único filme dirigido por Flávio Rangel.
Não poderia ser possível que para todas as pessoas posicionadas naquele tremendo foyer caloroso houvesse uma velhinha, uma para cada. Seriam muitos comentários sobre cineastas e filmes de peso. Isso em plena pré-estréia do curta-metragem do amigo diretor, de nome Maurício, a bordo de sua atriz de nu frontal, a tal Diana. Seria um pensamento inimaginável, talvez só eu pensasse assim. Eu e o David, que ouvia a sua velhinha com toda a atenção. Muito a aprender, com certeza. Um diretor de fotografia experiente, e sua velhinha lateral.
Quem precisa de mais? "Será que sua acompanhante retorna?", diz a velhinha ao meu lado. Eu respondo com novo sorriso. Aliás, é um repertório de novos sorrisos a cada pergunta nova sobre a acompanhante. "Ela é sua esposa, é?" – ela pergunta. "Não" – digo eu – "é minha acompanhante". Muito provavelmente, muitas acompanhantes se meteram no toilette para se resguardar daquele foyer sufocante. O relógio de pulso ficou em algum lugar, lá embaixo, entre o meu braço e a minha calça, é impossível acessá-lo. "Ela tem jeito de ser tão novinha, não é?", solta uma vez mais a velhinha ao lado. Um sorriso, e pronto.

Há momentos na vida em que você não sabe se é mais intrigante, mais instigante chafurdar num toilette durante uma pré-estréia de curta-metragem ou tentar dar um abraço no cineasta, em seu segundo filme em bitola 35mm. Penso no meu carro, lá fora, estacionado. Chove, e as pessoas ainda mais que se acotovelam no saguão, na porta de vidro, com a mocinha distribuindo fartamente os prospectos do filme, e o foyer onde todos nos encontramos, ali, cada um com sua velhinha ao lado, cada um com suas teorias sobre Cinema Novo, Nouvelle Vague, sobre o Neo-Realismo italiano e por aí vai, tudo de graça, ao lado, basta manter o ouvido atento.
Pensava agora no meu relógio. Que horas seriam?
Quantos minutos faltariam para o encerramento da sessão do longa-metragem do John Cassavetes, lá dentro, para depois de toda a platéia desse filme se dissipar, venhamos nós a entrar para finalmente assistirmos à nudez frontal da tal Diana, no curta-metragem? Seria um momento mágico, esse, em que o público ali reunido por convites feitos em e-mails e telefonemas diretos, viesse a se desgarrar de suas velhinhas laterais. Elas e seus comentários pertinentes sobre cineastas de grande peso. Algo teria de acontecer, como num bom ponto de virada. Mas não, inexiste ponto de virada. O que existe é um calor exasperante, meus pés que não tocam mais o chão, o relógio inacessível, o carro lá fora – na chuva – e aquela platéia atocaiada para ver uma nudez frontal. Nada mais.

Assim, rezando para que algo ali me salvasse de ouvir teorias da velhinha sobre o novo filme de Wong Kar-Wai e a mais nova comédia de Woody Allen, o diretor do curta-metragem, o meu amigo Maurício, todo sorrisos, ergue um copo, sabe-se lá como, e diz a todos o seguinte: "infelizmente o meu filme não será exibido hoje, por que o aparelho de DVD não está funcionando bem, me informou o gerente, e minha produção não trouxe a cópia em lata."
Pensei eu – depois de me perder de uma acompanhante que chafurdou no
toilette e de ouvir todos os comentários a respeito de Marilyn Monroe e Lucille Ball de uma velhinha ao meu lado, o diretor do curta-metragem, em plena pré-estréia nacional do filme, vem e me diz só isso?
E ele complementa: "O gerente do cinema jura que os convites de vocês, para hoje, servirão perfeitamente para amanhã! E eu os esperarei com todo o carinho, podem ter certeza! Foi uma honra enorme ter tido vocês todos aqui, nesta noite gloriosa, agradeço muitíssimo em meu nome e em nome de toda a equipe do meu filme!".
Nem mesmo em nome da atriz, de nome Diana, que nada levou de dinheiro para fazer um nu frontal adiado para amanhã, nem mesmo em nome do elenco dele o meu amigo diretor agradeceu. Talvez seja parte do plano, esse tipo de estratégia de marketing. Você convence todos a virem à sua pré-estréia, todos se acotovelam no foyer, todos ficam à mercê de suas velhinhas laterais, todas muito bem letradas em História do Cinema, e todas as possíveis acompanhantes que chafurdam no toilette, cada uma esperando para lavar o seu rostinho mimoso, e o filme mesmo, que é bom, não acontece. Acho que isso não deveria ter lugar na época do Billy Wilder. Talvez eu até devesse perguntar à minha velhinha particular.
Talvez até mesmo houvesse velhinhas laterais, naqueles dias, que lessem Louella Parsons e outros cronistas de Hollywood, e que tivessem seus comentários na ponta da língua, para o cinéfilo mais próximo ouvir. Talvez sempre existissem essas velhinhas, acantonadas nos saguões, prontas para capturarem a próxima vítima que irá ouvi-las até o filme começar, sempre prontinhas a fazer as perguntas mais insípidas, em meio a tantas opiniões sobre Cinema. Talvez eu devesse fazer uma tese de doutorado sobre elas. Talvez eu devesse voltar amanhã.

***
Copyright 2007 Ruy Jobim Neto

2 comentários:

Walmir disse...

Pois Ruy, já me vi nesses confrontos cinematográficos. Nessas ladainhas vaidosas.
Encontrando velhos conhecidos identificamos bem.
Uma graça o conto.
Dá um bom roteiro de curta.
Paz e bem

Walmir disse...

corrigindo: "velhos conhecidos que não identificamos bem."
paz e bem