terça-feira, 4 de setembro de 2007

Conto Terceiro:

LUZ NO LADRILHO
de Ruy Jobim Neto



A porta entreaberta. O menino aguarda, espreita. Ele se percebe numa escuridão apenas cortada por luminescências aqui e ali. Olha. Nem um pio ele solta. Nem a respiração ele pretende que se demonstre, nem uma tosse. Aguarda, sua frio, espera instantes mágicos. O que mais poderia ser diante de seus olhos pueris uma coisa linda? A prima que veio da cidade? Os cabelos lisos e escuros, a pele suave e branquinha, os olhos morenos por trás dos óculos sutis, a boca que dilata palavras ora doces, ora amargas, ora humanas? Marcela? A companhia a cavalo, a faca que espalha manteiga no pão logo cedo de manhã, a canção na varanda? Quanta coisa ao mesmo tempo, tudo lhe vem à cabeça!

Marcela tomava banho de madrugada, ele sabia. E queria ver algo a mais do que o ombro que transparece, o início do colo, o mexer dos braços fininhos, a suavidade dos gestos, todos muito bem medidos. A mulher sabe quando é observada, nisso há um conhecimento ancestral, aprendem com suas gerações para trás. Todas elas. E Marcela não estava de fora desse rol. A juventude que ela exala o transgride, deixa o menino atônito, sem vocábulo. Paixão juvenil? Era a primeira masturbação com motivo real e imediato, descobrindo os pêlos, o membro, o olhar. Porque é através do olhar que a coisa se dá, ele acabará descobrindo. O mesmo olhar de que se nutre Marcela e todas elas, as mulheres.

O banho. O som do chuveiro. Mas antes de tudo, a roupa que se coloca à parte. Ele imagina, o menino ouve, desespera-se, exaspera-se, teme ser visto pela avó, o que diria ela? Que a prima o levaria para outros descaminhos? Todos dormem, ele se certificara, inclusive a avó, principalmente. Roncos são ouvidos. Roncos e o chuveiro. Aquilo era de enlouquecer. O coração pulsa, é evidente. A prima está nua, pensa ele, nua e linda justamente como quando está vestida, só que melhor. Como será? Como será Marcela? Que lindos segredos ela guarda por trás de vestidinhos e camisas tão lânguidas quanto agressivas? As perguntas são infinitas, e todas se fazem presentes, insuportáveis.

A janela por fora da casa seria muito óbvia. O barulho de objetos faria a garota sair de seu banho. Marcela não cantarola agora, como faz de tardinha, na varanda, quando ela entoa umas modinhas da cidade, acompanhadas pela avó. O mistério de uma jovem mulher nada mais é do que o conjunto lindo de sua pele, o menino já esperava há tempos ali, não dormira. Na realidade, ele planejara aquilo, ele medira os passos, as ações, ouvira todas as frases de Marcela: “eu adoro tomar banho de madrugada” ou “ah, se eu pudesse andar nua pela casa, aqui, à noite”, aqueles comentários entre as meninas, entre as irmãs e a prima.

Nada mais comum do que o menino e a prima longínqua, agora completamente desnuda, nada mais excitante. Ela olharia para ele? Ele não teria chance alguma, pensa. E sabe disso, e sabe o quão distante está aquela criatura dele. O que se poderia fazer para ter Marcela em seus braços, enrolar-se infinitamente naquela pele, deitar sobre os cabelos lisos e escuros, deixar-se devorar pelos olhos morenos e cheios de novidades? Um homem, para amar Marcela, precisaria ter coisas, ser coisas, mas não ele, pensava. Não ele, o menino, ali, seminu e masturbante, silencioso na sua curiosidade.

Marcela está à vontade, as jovens sempre estão. Mesmo quando não fazem, seus gestos são redondos, quase lascivos. Mas são de uma precisão que atormenta. De dia, o que quer que façam tem seus objetivos, seus significados. Meninos são tolos o suficiente para não perceberem coisa alguma. E sonham, imaginam qualquer coisa, facilidades, frases sem palavras perfeitas, tudo cai feito um buraco. Há uma distância insolúvel. Meninos exasperam, as jovens se deliciam. A luz no ladrilho diz coisas. A porta indica saída de Marcela, à espreita novamente o menino se coloca. Paralisa-se. O que pode acontecer?

Uma toalha. A roupa ficou sobre algum móvel, um varalzinho, algo assim. Marcela ainda tem a pele úmida, gotas ainda quentes se espalham pelos ombros e descem pelos braços fininhos. Cabelo liso e respingando. Cheiro de prima banhada. Saberá ela da presença dele, ali, à espera de algo que nem ele mesmo sabe o que é? O que ele ouvira de Marcela se concretizaria? Mulheres têm coragem, a mãe dele tem, enfrentou muita coisa, mas a mãe nem passa pela cabeça agora. Marcela. A pele e a toalha. E a sensação de perambular pelos corredores, à noite, roncos adentro, luminescências aqui e ali. A ousadia a olhos vistos.

Os pequenos pés que de dia embalam botinas e sapatinhos nas festas agora estão à mostra, os tornozelos finos, todo o conjunto de que se forma Marcela. Passos de felino, inaudíveis, deliciosos, brincantes. O menino sua gelado, neste momento. Ele a perde de vista, ela faz curvas na escuridão, vai para outras saletas, vasculha corredores, graciosamente ela corta a noite. A escada, a cadeira de balanço, a lareira apagada, uma luz que vem pela fresta da janela da sala. O menino sente seus ossos estalarem, qualquer som é perigoso, Marcela é quem determina.

Sombra e beleza se completam, qualquer fio de luz descobre Marcela, é muito tarde, ou muito cedo, todos dormem apesar disso. Mesmo os gatos sabem quando miar, e não miam quando vêem dois corpos nus após fazerem amor, é algo da sabedoria milenar deles. O que farão diante de uma jovem envolta em toalha, ou de um menino espreitando essa mesma jovem é algo que nem os livros sabem dizer. O menino se deita de bruços no chão. Não vê Marcela, mas vê a toalha. Ele sabe agora, ela se encontra linda. O menino quer muito se aproximar. Quiçá a prima esteja deitada no sofá das festas e das conversas matinais, ou mesmo na cadeira de balanço, dizendo coisinhas desconexas e dignas de ouvir.

O sono é algo que não vem, nem o bocejo, só o coração pulsando feito louco. O corpo inteiro parece uma pilha, uma explosão, um moinho descontrolado. Uma risada baixinha ele ouve. Como quer saber do que se trata! Um alívio, respiração, tessitura de voz, Marcela fazendo e falando suas coisas, só dela. Que vontade de saber, de compartilhar, mas ela é rápida nas palavras como quando enrola suas madeixas com os dedos. Paixão de menino? Os olhos espertos que vêm à mente, o cheiro de prima banhada, os pés de feltro que cruzam a noite na casa, que aventura! O coração pulsa, quase explode, medo completo de ser visto e reconhecido. Marcela agora tem outro gosto, não somente o de passar manteiga pelo pão logo cedo de manhã, nem o das cantigas na varanda. Há sabor. Muito sabor.

Os pés dela se movem, rápidos, lépidos. O menino fica atônito. O corpo nu da prima vem na direção do corredor, vem, ele vem, sem parar. Ele fecha os olhos, é o fim, será descoberto, o pavor completo. Mas por entre os dedos, Marcela se deixa avistar, ela vira para a cozinha, rápida e nua. Sorriso, ele ouve. Gole d’água no meio da madrugada. O menino quase tem uma síncope, o corpo dele praticamente se paralisa. Ela é linda, linda. Não a pode venerar, nem idolatrá-la, quanto menos imaginar coisas, mas ele imagina. Marcela não. Ela é mulher, sente de outras formas a vida, tem mais os pés no chão, aparentemente. A toada que a embala segue noutro curso, é a terra que a move e faz ter a beleza dos pássaros que alçam vôo.

Os segundos são eternos naquele pedaço de noite, naquela luminescência, naquele cricrilar da mata selvagem, na juventude do novo dia. Ele fecha os olhos. Deita o rosto sobre o chão, sorri. Quando abre os olhos, depois de respirar sem poder, vê dois pés de lado para ele, paralelos à cabeça, juntos. Marcela. Olhando para cima, a presença da toalha, ilustre traidora. A prima se agacha, olha bem dentro dos olhos, pupila com pupila, naquele naco de luz que nem se avoluma direito. Um sorriso. Ela toca delicadamente dois dedos nos lábios, beija-os e depois os leva até os lábios do primo, ali, deitado. Ela se levanta tão logo encerre o gesto e volta para o seu quarto. Ele permanece ali, deitado, rosto no chão, o toque dos dedos dela nos lábios, o beijo transmitido, proibido, cantiga na varanda, manteiga no pão, a imagem do corpo nu, os grilos da noite, a pele de prima banhada, a luz no ladrilho. Nem se sabe mais como será amanhã.

FIM

Um comentário:

Walmir disse...

esse é um conto maravilhoso, meu amigo. Conto de quem domina as artes da narrativa visialuzando-as, como se dirigisse dois personagens num filme, num teatro.
paz e bem